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segunda-feira, novembro 28, 2011

pobrezinhos...

(No dia em que os nossos ais passaram a património imaterial da humanidade, vale a pena relembrar um artigo  cada vez mais na crista da onda - não o  sendo, contudo, pelas melhores razões)


O Acordo Tortográfico
por Miguel Esteves Cardoso, 1986


Como os filólogos da República da Guiné-Bissau não puderam estar presentes na recente reunião para o Novo Acordo Ortográfico, estamos todos à espera da sua ratificação para saber como é que nós, os Portugueses, vamos escrever a nossa própria língua. E esta? De qualquer modo, os grandes peritos de São Tomé e Príncipe, de Angola, do Brasil e dos outros países de «expressão oficial portuguesa» já se pronunciaram. A República da Guiné-Bissau, porém, também terá a sua palavra a dizer. Muito provavelmente, uma palavra escrita à maneira deles; mas não faz mal. Nas palavras de Fernando Cristóvão, 1986 é o ano que marca a nascença da lusofonia. A grandiosa lusofonia está, obviamente, acima da mera língua portuguesa.
A lusofonia é uma espécie de estereofonia, só que é melhor. A estereofonia funciona com dois altifalantes, enquanto a lusofonia funciona com mais de cem milhões. Para mais, os falantes da lusofonia têm a vantagem de ser feitos na África e na América do Sul, o que lhes confere uma sonoridade nova e exótica. Para instalar uma aparelhagem lusofónica devidamente apetrechada, são necessários complicados componentes tupis, quimhomguenses, umbandinos e macuas. Enfim, coisas que não se fabricam na nossa terra. A partir de 1986, todos os povos a quem uma vez chegou a língua portuguesa podem contar com um lusofone em casa. Um lusofone é um aparelho que permite a qualquer indígena falar e escrever perfeitamente esta nova e excitante língua, que poderá passar a chamar-se o brutoguês.
Para haver lusofonia, nada pode ser como dantes. Os Lusíadas passarão a conhecer-se por Os Lusofoníadas. Se dantes havia a língua portuguesa e a sua particular ortográfica, agora passa a haver a língua brutoguesa e a sua ainda mais particular tortografia. A tortografia, conforme se estabeleceu no Acordo Lusofónico de 1986, consiste em escrever tudo torto. As bases da tortografia assentam numa visão bruta da fonética. Por outras palavras, se a lusofonia é uma cacofonia de expressão oficial brutoguesa, a tortografia consiste fundamentalmente no conceito da cacografia. Dantes, cada país exercia o direito inalienável de escrever a língua portuguesa como queria. As variações ortográficas tinham graça e ajudavam a estabelecer a identidade cultural de cada país. Agora, com o Acordo Tortográfico, a diferença está em serem os Portugueses a escreverem como todos os outros países querem. Como todos os países passam a escrever como todos querem, nenhum país pode escrever como ele, sozinho, quer.
As ortografias tupis e crioulas, macumhenses e fanchôlas passarão a escrever-se direito por letras tortas. O Prontuário passa a escrever-se «Prontuario», rimando com «desvario» e «CUF-Rio». O Abecedário passa a escrever-se «Abecedario», em homenagem a Dario, grande Imperador da Pérsia, que, por sua vez, se vai escrever «Persia», para rimar com «aprecia», já que qualquer persa aprecia uma homenagem, mesmo que seja só uma simples omenagem. Já dizia acentuadamente Fernando Pessoa que «a minha pátria é a língua portuguesa». Agora passa a dizer desacentuadamente «a minha patria é a lingua portuguesa», em que «patria» deixa de ser anomalia e «lingua» é mesmo assim, nua e crua.
Será possível imaginar os ilustres filólogos de Cabo Verde a discutir minúcias de etimologia grega com os seus congéneres de Moçambique? Imagine-se o seguinte texto, em que as palavras sublinhadas serão obrigatoriamente (para não falar nas grafias facultativas) escritas pelos Portugueses, caso o Acordo seja aprovado: «A adoção exata deste acordo agora batizado é um ato otimo de coonestação afrolusobrasileiria, com a ajuda entreistorica dos diretores linguisticos sãotomenses e espiritossantenses. Alguns atores e contraalmirantes malumorados, que não sabem distinguir uma reta de uma semirreta, dizem que as bases adotadas são antiistoricas, contraarmonicas e ultraumanas, ou, pelo menos, extraumanas.
«No entanto, qualquer superomem aceita sem magoa que o nosso espirito hiperumano, parelenico e interelenico é de grande retidão e traduz uma arquiirmandade antiimperialista. Se a eliminação dos acentos parece arquiiperbolica e ultraoceanica, ameaçando a prosodia da poesia portuguesa e dificultando a aprendizagem da lingua, valha-nos santo Antonio, mas sem mais maiúscula.» A escrever «O mano, que é contraalmirante, não se sabe mais nada, mas não e sobreumano»? O que é que deu nos gramáticos de além-mar (ou escrever-se-á alemar?)? A tortografia será uma doença tropical assim tão contagiosa?
Os Portugueses, no fundo, assinaram um Pacto Ortográfico que soube a Pato. Ninguém imagina os Espanhóis, os Franceses ou os Ingleses a lançarem-se em acordos tortográficos, a torto e a direito, como os Portugueses. Cada país – seja Timor, seja o Brasil, seja Portugal – tem o direito e o dever de deixar desenvolver um idioma próprio, Portugal já tem uma língua e uma ortografia próprias. Há já bastante tempo. O Brasil, por sua vez, tem conseguido criar um idioma de base portuguesa que é riquíssimo e que se acrescenta ao nosso. Os países africanos que foram colónias nossas avançam pelo mesmo caminho. Tentar «uniformizar» a ortografia, em culturas tão diversas, por decretos aleatórios que ousam passar por cima dos misteriosos mecanismos da língua, traduz um insuportável colonialismo às avessas, um imperialismo envergonhado e bajulador que não dignifica nenhuma das várias pátrias envolvidas. É uma subtracção totalitária.
A ortografia brasileira tem a sua razão de ser, e a sua identidade própria. Quando lemos um livro brasileiro, desde um «Pato Donald» ao Guimarães Rosa, essas variações são perfeitamente compreensíveis. Até achamos graça, como os Brasileiros acham graça à nossa. Tentar «uniformizar» artificialmente a ortografia, para além das bases mínimas da Convenção de 1945, é da mesma ordem de estupidez que pretender que todos aqueles que falam português falem com a pronúncia de Celorico ou de Salvador da Bahia. É ridículo, é anticultural e é humilhante para todos nós. Se não tivessem já gozado, era caso para mandá-los gozar com o Camões.
Imaginem-se os biliões de cruzeiros, escudos, meticais, patacas e outras moedas que vai custar a revisão ortográfica de todos os livros existentes. Imagine-se o distanciamento escusado que se vai causar junto das gerações futuras, quando tentarem ler escorreitamente os livros do nosso tempo. Sobretudo, imagine-se a desautorização e a relativização que o acordo implica. Amanhã, uma criança há-de escrever esperanssa e quando for chamada à atenção, dirá «Tanto faz, que estão sempre a mudar, e qualquer dia desaparecem os cês cedilhados». Ou responderá, muito simplesmente: «Pai, mas é assim que se escreve em Cabo Verde!»
A língua portuguesa nasceu do latim – toda a gente sabe. Um dia, a língua brasileira, e a língua são-tomense, e a língua angolana serão também línguas novas e fresquinhas que nasceram da língua portuguesa. Ninguém há-de respeitar menos a língua por causa disso. (Nós também não desrespeitamos o latim.) As línguas são indissociáveis das culturas e das histórias nacionais, e elas são diferentes em todos os países que hoje falam português à maneira deles. A maneira deles é a maneira deles, e a nossa é a nossa. A única diferença é que Portugal já há muito achou a sua própria maneira, tanto mais que a pôde ensinar a outros povos, e é um ultraje e um desrespeito pretender que passemos a escrever como os Moçambicanos ou como os Brasileiros. Eles são países novinhos. Nós somos velhinhos. E não faz sentido ensinar os velhinhos a dizer gugudadá, só para que possam «falar a mesma língua» que as criancinhas.
Sem império, Portugal tem ainda a dignidade de ter sido Império. Mas há um feitio mesquinho que se encontra em muitos portuguesinhos de meia-tigela, que consiste em ter medinho que as ex-colónias se esqueçam de nós. Estes acordos absurdos são sempre «ideia» dos Portugueses, armados em donos de uma língua. A verdadeira dignidade não é essa – é soltar a língua portuguesa pelo mundo fora, já que a sua flexibilidade é uma das suas maiores riquezas. Aquilo que já aconteceu – haver um português brasileiro, um português angolano, um português indiano – é prova gloriosa disso. Mas quando os Portugueses desejam meter-se na vida linguística dos outros, é natural que os outros também se metam na nossa. Os próprios participantes deste último Acordo parecem ter perdido completamente a cabeça, aceitando normas ortográficas disparatadas para a língua portuguesa de Portugal. Sem ingerências da nossa parte, seriam inaceitáveis as ingerências dos outros. O Acordo agora proposto ao Governo – que o Governo deveria ler muito cuidadosamente, antes de consigná-lo, entre saudáveis gargalhadas, ao caixote de lixo da história – é uma mistura diabólica e patética de extremo relaxamento ortográfico («Tudo vale, seja na Guiné, seja em Loulé») e de inadmissível sobranceria cultural («Tudo vale, mas nós é que temos de dar o aval»). Faz lembrar aqueles miúdos que dizem «Eu faço o que vocês disserem, desde que eu possa ser o chefe».
Dizem que é «mais conveniente». Mais conveniente ainda era falarmos todos inglês, que dá muito mais jeito. Ou esperanto. Dizem que a informática não tem acentos. É mentira. Basta um esforçozinho de nada, como já provaram os Franceses e já vão provando alguns programadores portugueses. Dizem que é mais racional. Mas não é racional andar a brincar com coisas sérias. A nossa língua e a nossa ortografia são das poucas coisas realmente sérias que Portugal ainda tem. É irracional querer misturar a política da língua com a língua da política.
O que vale é que, neste mesmo momento, muitos Portugueses – escritores, jornalistas e outros utentes da nossa língua – estão a organizar-se para combater esta inestética monstruosidade. Que graça tinha se se fizesse um Acordo Ortográfico e nenhum português, brasileiro ou cabo-verdiano o obedecesse. Isso sim, seria um acordo inteligente. Concordar em discordar é a verdadeira prova de civilização.

Nota: o texto em itálico, negrito e/ou sublinhado é da minha responsabilidade.
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Passaram-se - é incrível - 25 anos! O pior, ou seja, o Acordo(zinho), apesar de tanto português contra, vai em frente, as indústrias livreiras dos hipermercados rejubilam e o contra-senso vingou. Não na minha língua. Já leio jornais com atos àtonos (Expresso), revistas de Livros em que metade dos colaboradores escreve entre parêntesis sem ser ao abrigo do acordo (Ler), vejo nas televisões generalistas mais erros ainda do que era costume (hépátite é uma constante, por exemplo), leio livros impressionantes, saídos há pouquíssimo tempo (O Chalet da Memória, Tony Judt, Edições 70), amputados de consoantes mudas e de meses com corpo inteiro.
Sinto-me mais pobrezinha. Não é só da crise, é das letras.

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