Não é lá no fundo do céu estrelado que eu a pinto. É mais como uma aparição da Branca de Neve misturada com as expressões dos sete anões. Curiosamente, acho que ela tem uma relação especial com o filme e com os anões... Sem saber bem como, a última vez que a vi levava uma t-shirt da Women' Secret (ou da Oysho, não quero fazer publicidade enganosa) com o dorminhoco, a abrir a boca, a espreguiçar-se com aquele ar característico.
Ela achou piada, atrás dos olhos e cara inchada, atrás de um corpo que já não respira, de um cérebro a ficar estreito. Eu disse-lhe que ele estava como ela, a precisar de descansar e de se espreguiçar muito. Ela concordou, mas já sabia que não se iria espreguiçar muito e o descansar já não seria neste reino.
Levámos-lhe palhaços - ela foi Palhaça de grandes sapatos vermelhos. Ela olhou embevecida para os palhacinhos, como se fossem já de outra vida, de uma encarnação passada e boa.
O tempo passa. Não sei como passa para as pessoas que o sentem sumir-se como se se tornasse num sono profundo e incómodo em que se esquecessem de respirar. (A princípio não a reconheci, coisa de 30 segundos; depois relembrei-me das faces de outros tempos, outro hospital, e entrei na negação racional do médico - a pessoa é a mesma, quem não a reconhece não sabe o que se passa lá dentro, a cara é a mesma).
Só que a cara não é a mesma, é a de alguém "in limbo", entre cá, lá e esse sítio incómodo chamado talvez não exista por muito tempo. Triste, sem capacidade de controlar a própria vida, mas disfarçando com força.
E as coincidências que teimam, porquê? Porque é que os conhecidos tornam alguns dias dupla ou triplamente fatais, semanas arrasadoras? Últimas vontades, Santa Joana, a Princesa. Ela não era Joana (mas é o nome da filha), mas era Princesa, velada na igreja do mesmo nome, que eu só conheci como conjunto amorfo de tijolos de estilo moderno. Pelas capelas, imagino, que a igreja por dentro até possa ser bonita.
A ironia das vizinhanças das avenidas novas onde eu, desde pequena, adivinhava prolongamentos do aeroporto pela Gago Coutinho até chegar ao Areeiro. Os aviões planando tão baixinho de manhã pela 2ª circular (não param nunca). As pombas e os Donas Elviras do Rossio que já não há. Santa Joana, que fará na Estados Unidos da América? Não conheço a história.
Mas é perto decerto, de toda a família e da sua casa, tudo á volta de Alvalade, Roma e EUA. Uma família grande. Pais que enterram uma filha enquanto deveriam brincar com os netos. Pais que a vida envelhece e entristece por sentirem que o trabalho está feito e já os dispensa, porque já dispensou a filha pródiga. Que vêem uma vida construída andar para trás.
Santa Joana, a princesa, que não acreditava ponto, mas quis ficar com um anjinho da guarda. Não quis missa e foi cremada num dia quente demais nos Olivais, com cheiro a incêndio e estilo bunker minimalista de Auschwitz.
Suponho que será por isso que tanta gente fica incomodada ao pensar em cremação. Nunca tinha assistido. É insípido. Estava muito calor para tanto luto. E no entanto, foi na mudança do tempo que eu senti (ou me pareceu) que a íamos perder.
Uma luz que se perde. Porque será que vida é tanto o sinónimo de Luz? Dar à Luz? A luz que se acende nas velas que ela adorava. Santa Joana. Fica em paz, porque o resto de nós quer ter essa mesma certeza. God Speed.