Pedras Rolantes

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quarta-feira, outubro 06, 2010

As pequenas memórias



"Deixa-te levar pela criança que foste."

As Pequenas Memórias
José Saramago

Foi no dia 18 de Junho, o meu atraso é dedicado, mais que delicado. Entretanto a Fundação Saramago escolheu celebrar Saramago todos os dias 18. Por essa epifânia, pus essa questão à dita (no Facebook) - comemora-se a morte de quem queremos manter vivo? Responderam qualquer coisa inconsequente, o que interessava era comemorar bláblá. É muito portuguesinho, comemorar a efeméride e não a pessoa. É muito obrigadinho, palavra que Saramago deve ter utilizado pela 1ª vez quando lhe estenderam num tapete a Casa dos Bicos. Obrigadinho.
Nunca me hei-de lembrar de dia 18 (que aliás é dia em que eu nasço, e dia de São Paulo tb), porque tenho amnésia selectiva para dias de despedida. Sei que foi depois do Sto António, a meio dos Santos populares, e apareceram aqueles Obrigados pendurados entre as sardinhas e a Superbock.
Tenho pena, gostava da maioria dos livros que li dele. Ao contrário de muita gente, li mesmo os livros dele. Começando pelo Memorial. Para aí aos 13 anos; ao princípio não entrava, estranhava. Pousei-o e voltei semanas mais tarde. Foi o 1º de muitos romances. Não vou destilar elogios, já tive que salvar a honra do morto de alguns monárquicos alentejanos ressabiados por não perceberem a 1ª página do Memorial. E foi luta cerrada no facebook. As pessoas julgam que podem ser tiranetes da sua opinião. "era vermelho", logo "tirou-nos as terras", logo "aquela coisa do Diário de Notícias", logo "saramago é nome de erva ruim", logo "já viu algum Nobel que não fosse vermelho", (referi Churchill, não convenceu), logo "o PCP esteve metido com o Salazar para matar o Humberto Delgado" - esperem lá, o quê?????? Entrámos num ficheiro secreto, feito de cromos e colagens com cuspe. E Saramago, o que fazer com esse "traste" (apesar de estar morto, utilizo esta palavra, que no original foram várias e muito piores).
Como o défice é de Cultura (e de História), acabam por se perder na própria cauda. Saramago disse "sou um comunista hormonal". Ponto. Que diabo! Quero lá saber. Porque surge tão frequentemente o chavão "intelectual de esquerda"? Porque não há intelectuais ao meio e à direita? Jesus!...
É claro que Saramago não era pessoa fácil, veio de fora do establishment e tiveram que o engolir, mais ao Nobel; aprendeu por si próprio, cultivou hábitos de leitura, passou a vida a aprender. Quem dera a muita gente. Quem dera a muita gente ler, perceber e integrar a revista Ler de Julho/Agosto que lhe foi dedicada.
O resto, sinceramente, ruído de fundo que quem não faz nada gosta precisamente de amplificar, não me interessa. Curiosamente, o meu livro "especial" é o Ano da Morte de Ricardo Reis, agora partilhado por uma grande multidão de cérebros pensantes. Mas gostei muito também de Jangada de Pedra, do Memorial, da História do Cerco de Lisboa e do Evangelho (para além do livro de contos e de versos avulso). Não gostei do Levantado do Chão e o Todos os Nomes está parado a meio há anos.
A minha Avó era leitora compulsiva; gostava de Saramago e leu todos os que eu li mais o parado e o Ensaio sobre a Cegueira -foi o único que não gostou.
Por isso o Ensaio ficou à parte, à espera do filme que haveria de aparecer e convencer. Já depois de 18 de Junho, fiz esse esforço, pela minha avó. Foi um esforço. Tem muita raiva lá dentro.
Há pequenas pérolas, como A maior Flor do Mundo, o Conto da Ilha Desconhecida, A Viagem do Elefante e As Pequenas Memórias. Estes últimos livros foram "dados" à minha Avó e estão no quarto dela para quando ela quiser dar uma piscadela.
As Pequenas Memórias levam-nos às lezírias e ao Tejo que manda entre cá e lá, aos avós que, da terra lhe ensinaram tanto, da Azinhaga (aquela terra com nome de Aldeia...), dos anos em Lisboa quando pequeno - é daquelas coisas que a minha Avó adoraria ter lido e ficado a comentar como tinha sido também a sua infância em bairros agora finos de Lisboa, antes muito mais, digamos "humanizados".
Nessas pequenas coisas, como na feira do livro, a observar um rapaz reguila a fazer das suas, sendo cortês sempre, estava Saramago sonhador.
Outras assuntos foram sempre muito privados, muito seus, muito sussurrantes, a fera que se levanta quando o escritor levanta a pedra (e escreve um romance); a atitude de defesa perante aqueles que possivelmente hostilizaram a sua "subida" no mundo das letras aumentou o seu fel; a imagem de rapaz na catequese a fazer birra, que se encanta com uma Nossa Senhora num retábulo, Portugal fora; a luta contra os demónios da morte, mais do que com o ruído dos "deuses". Morreu com uma doença da minha bitola (mais um, infelizmente). Os espanhóis disseram apenas leucemia crónica; acrescento-lhe linfática ou linfocítica e confirmo a minha presunção. Há muito mais tempo do que toda a gente sabe ele está doente; digamos, 20 anos em média, e com sorte -os livros foram-se tornando mais acintosos acerca de tudo, do mundo que não quer mudar e da imortalidade que não está lá, antes escorre e lembra o seu contrário todos os dias.
Finalmente, as frases na contracapa. Chegaram a perguntar-lhe onde se podia encontrar o livro da citação, o que o fez decerto rir-se muito para si mesmo - "inventei mais um livro".
A sua maneira de escrever foi a sua dádiva à nossa literatura. Tenho ainda muitos livros seus para ler e guardar. Como as Pequenas Memórias e a minha Avó, sempre.
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