Pedras Rolantes

"A vida é aquilo que acontece enquanto estás demasiado ocupado a fazer outros planos" John Lennon



"You can't always get what you want, but sometimes, yeah just sometimes, you can get what you need" The Rolling Stones



quinta-feira, maio 20, 2010

Flor B (14/08/1997)

Dantes, havia jardins; não daqueles onde nos espatifávamos nos escorregas e voávamos nos baloiços, nem daqueles todos rócócós, cheios de pavões, cisnes e estátuas.
Havia jardins de Flores, onde as Flores mandavam e eram obedecidas. E um deles era nas traseiras da nossa casa. Era nosso, nosso, maneira de dizer… era das Flores que lá moravam.
Visto pela primeira vez parecia uma anarquia total, só Flores, sem arranjo de cores, sem separação segundo as espécies comuns de Lineu, mas possuindo um brilho ofuscante, daqueles que inebria.
As Flores eram o passatempo da minha Mãe, e ela plantava as sementes conforme o dia, o tempo, a lua, as marés e os astros, sem se preocupar com planos paisagísticos.
Eu às vezes seguia-a para jogar ao berlinde ou meter-me com os bichos-de-conta, e mais tarde para andar de bicicleta. Uma vez, quando caí provoquei uma síncope na Viridiana, arranquei todas as pétalas da Carmelina, esmaguei algumas das pétalas da Mariana, Sofia e Vera, e pior que tudo, arranquei a Adriana (ou o que restava dela…) pelas raízes.
Depois desta morte, causada por um rapaz doidivanas mais a sua maquineta, fui expulso do jardim. Grande estopada! Eu até sou alérgico a pólen.
Mas o que realmente me entristeceu foi, ao olhar todos os dias para a Mãe, a tratá-las com o carinho de sempre, elas reagirem com desprezo e altivez, como se ela fosse a escrava daquele bando de vegetais convencidos.

Bem, mas antes que me achem maluco de todo, tenho que lhes explicar algumas coisas sobre este jardim. Para começar tem as flores mais chatas deste mundo - porque cada uma tem um nome, pessoal e intransmissível, cada uma é, definitivamente, a mais bela do mudo, motivo pelo qual passam todo o dia a gritar e a arengar umas com as outras.
É que elas nascem de umas sementes especiais encontradas dentro de um grande pote, provavelmente pertencentes ao antigo proprietário, e o Jardim era apenas um terreno baldio. Foi pela mão e engenho da Mãe que elas começaram a nascer…
O que é mais estranho é que quando desabrocham, começam a falar (pelos cotovelos), e vem agarradinho ao botão um cartãozinho, preso por uma fitinha de seda, que diz “O meu Nome é…”. E todas e todos tem nomes diferentes, que a minha Mãe sabe de cór e trata com igual carinho, excepto quando vem uma tempestade e elas gritam todas ao mesmo que querem uma casa.
Decidi então remediar o meu erro - comprei fertilizante para as supracitadas vítimas, e tirei mais uma semente do pote, igual a tantas outras.
As vítimas olharam-me com desdém, mas o cochichar parou quando todas repararam que eu estava a colocar uma semente na covinha onde em tempos tinha nascido Adriana. Foi o início do calvário.
Todos os dias me deixavam entrar para regar a minha semente, todos os dia eu ouvia o escárnio das restantes “…se calhar pensa que vai remediar alguma coisa… a nossa Adriana já se foi…mãos de morte semeiam o sangue do crime…”.
Até que ela nasceu, cresceu quase nada e no botão não trazia nenhum cartãozinho. Foi a chacota total. A pequena Flor abriu os olhos e o que viu foi um mundo inteiro a rir-se dela. ”Estropício de flor, pequena, feia e sem nome!”
Eu perguntei-lhe se lhe podia chamar Flor B, e ela a chorar, deitou-se na palma da minha mão e disse que queria morrer. “Eu não sou como é esperado ser, as minhas colegas vão tirar-me a água, vão atrair insectos e eu não, vão crescendo para o sol, e para mim só resta a sombra, mirrar e morrer…”
Eu sabia que poderia ser tudo verdade, e que o orgulho cega. Levantei-a e com cuidado escavei para lhe amparar as fracas raízes. Corri para casa, e perguntei à Mãe o que fazer.
Ela -la uns dias dentro de água e depois mudou-a para um pequeno vaso, a uma distância segura da janela da cozinha, o quarto da casa onde ela mais se movimentava, e cantava…

E a Flor B começou a cantar também. Agora, todos dias, quem se cala é o Jardim inteiro.
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